sábado, 31 de março de 2012

Notícia


A noite cai e com ela um anúncio de morte chegou. Sentimo-la chegar, passar por entre nós silenciosamente. Chega lentamente sem o menor ruído e parte levando consigo alguém que se encontrava ao nosso lado.
O telefone tocou pouco depois das 20 horas e um anúncio de morte veio, morreu alguém próximo. O telefone caiu no chão e lentamente ela agachou-se a chorar. Chorava pelo que sofrera aquela pessoa, chorava pelo que viveu com ela e que nunca mais iria viver, chorava pela falta que iria sentir dele. Chorava por nunca mais sentir o seu abraço. Chorava por tudo e chorava pelo nada.
Ali ficou durante algum tempo agachada chorando, no telefone a pessoa que estava do outro lado gritava o seu nome, implorando que voltasse a atender, mas ela não ouvia. Ela partira para outro lugar no interior da sua mente, para um lugar onde só habitam as memórias.
A voz do outro lado parou só se ouvia o som intermitente do telefone e ela não se movia, as lágrimas pararam por não ter mais água nos seus olhos, mas ela permanecia imóvel, sem se levantar, sem demonstrar qualquer intenção de levantar o telefone e recolocá-lo no descanso. Ela não demonstrava qualquer reacção ao mundo exterior, parecia ter ficado presa no interior de si, perdida na imensidão do tempo, parada naquele momento que o telefone tocou.
Batem à porta violentamente, ela não reage, nem move os seus olhos para longe daquele ponto fixo na parede. Batem com mais intensidade e ela nada, sem se mover. Batem durante muito tempo até que se ouvem encontrões contra a porta para arrombarem e entrarem. Finalmente as dobradiças cedem e conseguem entrar. Uma figura de um homem corpulento surge por detrás da porta arrombada e é seguido por uma mulher que entram na casa à procura dela. Vão verificando todas as divisões até a encontrarem agachada contra a parede, com o telefone em frente dela, no quarto…

terça-feira, 27 de março de 2012

Abismo


Aqui estou eu, parada em frente ao abismo que se abre aos meus pés. Atiro-me? Penso no que vivi. Nada mais me importa se não te tiver a ti. Estou só, perdida, sem a tua luz para me guiar. Ninguém me telefona, ninguém pergunta por mim, nem tu.

Esqueceste-te de mim tão facilmente como se não passasse de um fantasma do teu passado sem importância, sem qualquer interesse.

Partiste e deixaste-me só, sem saber porquê, nem para onde ir.

Passei a ser invisível passando nas ruas sem ninguém me ver. Então porque não saltar terminar com tudo se não tenho razão para viver. Quando esta eras tu? Atiro-me, salto. Voo para o infinito. A queda é silenciosa, calma e sem atrito.

Vejo o fundo do abismo, arrependo-me tento voltar para trás mas é tarde demais.

Veredicto(s)


Na mente de Sara as ideias atropelavam-se, numa sucessão confusa de pensamentos optimistas e pessimistas!



   Ante de sair de casa, naquela manhã, decidira cuidar-se como se tivesse um encontro especial, e a amarga ironia que muitas vezes empregava nos julgamentos, ao alegar em desfavor dos que acusava em tribunal, não deixava de lhe acorrer sob a forma de uma de duas hipóteses possíveis " vestida para matar" ou seria antes "vestida para morrer"



Era quase impossível não fazer um balanço da sua vida, levara um livro, ainda gostaria de saber que espécie de  ingenuidade a levara a pensar que um livro a poderia distrair durante a espera para ser atendida, já que, independentemente do tempo a aguardar, este seria sempre dilatado.



Que construíra Sara?

Tinha sido a filha perfeita, havia seguido criteriosamente os planos que o pai lhe traçara, de continuar a carreira jurídica- tradição familiar a passar de geração em geração – sim, seguira Direito, e a sua extrema dedicação levara-a facilmente ao exercício daquela que, ainda na faculdade, era a sua profissão de sonho – Magistrada do Ministério Público, chegava mesmo a dizer, em tom de brincadeira e em convívio com família e colegas que uma pessoa como ela, tão meticulosa, queria-se do lado da lei, antes que fosse cair nas teias do crime.

O amor, esse tinha-o encontrado durante o estágio, na pessoa de Emílio, um colega que acabou por desistir da Magistratura e ingressar no terreno pantanoso que era a advocacia. Sim , pelo menos tinha encontrado o amor.

O que lhe faltava cumprir? Que desígnio poderia ficar impossibilitada de realizar?

Um filho, tomada de uma imensa perturbação ansiosa, Sara não conseguiu evitar as lágrimas enquanto recordava que, um ano antes, Emílio aventara a ideia de terem um filho, tinham ambos 32 anos, e já ia sendo tempo de continuar as famílias, dissera ele. Movida por um egoísmo e ambição que sempre colocara a levaram a colocar a carreira em primeiro lugar, e com receio de se ver privada da possibilidade de acompanhar um mega julgamento de tráfico de droga, Sara adiou, mais uma vez e sine die, a data da sua maternidade, teria assim feito cair por terra o sonho de Emílio ?

Também não pode deixar de lamentar todos os fins de semana em que, refugiando-se no sótão, e tendo os processos por companhia, ficava a trabalhar horas sem fim, negligenciando Emílio que ainda assim vinha relembrar-lhe os horários das refeições e trazer-lhe uns miminhos para se alimentar.

Finalmente, chamaram o seu nome, trôpega pelo medo e pela emoção, Sara deixou que as pernas a levassem até ao gabinete do médico, e nem toda a maquilhagem conseguia ocultar a sua extrema palidez, era ela quem estava prestes a receber o veredicto…

O médico, gentilmente, pediu a Sara que se sentasse, tendo-a acompanhado até à cadeira, e sem mais delongas, vendo-a pálida , transmitiu-lhe o resultado da biópsia, afinal, não era nada que a preocupasse, era uma massa perfeitamente benigna que apenas teria de ser removida numa cirurgia simples.

De alegria, Sara chorou e abraçou o médico.

Não dissera nada a ninguém para não ficarem em cuidados, mas nessa noite tinha algo muito especial para fazer, ia preparar um jantar para toda a família e dar-lhes-ia as boas notícias. A sós, iria convidar o marido para no dia a seguir, partirem durante o fim de semana, à descoberta de um qualquer refúgio romântico.

Sara apressou-se, era urgente viver e tinha muitos sonhos para realizar!

 By : Isabel Alexandra Almeida (Os Livros Nossos)

domingo, 25 de março de 2012

Passos


Ouço passos na escada, o meu coração salta sobressaltado. Será ele? Encolho-me sobre mim mesma com o temor de o ser. Fico expectante a olhar para porta e ouvir a sua chave na fechadura. Passam à minha porta e continuam. Suspiro.
Vou até à casa de banho limpar o meu rosto. O espelho devolve-me a imagem de um rosto maltratado, cheio de manchas negras. Não saio de casa, tanto por medo dele como por vergonha, não queria que me vissem assim. Derrotada. Lembro-me de quando era mais nova, da força de viver que tinha, sinto saudades desse tempo em que vivia sem medo, sem sobressaltos. Mas agora tudo acabou, e sei que o meu dia-a-dia é este.
Tudo tem que estar impecável, tudo limpo e quando chegar quer a comida na mesa, come enquanto olho em pé ao seu lado, depois corre a casa à procura de um erro que tenha feito. Depois sei, que vem a fúria, por estar tudo bem ou por ter algo mal. É a mesma coisa sempre, um dia de terror, depois vêm as desculpas os pedidos de perdão. Mas o medo fica sempre permanente em mim.
Ouço a maldita chave que me sentencia a mais uma noite negra e prometo a mim mesma que não vou chorar, é desta vez que não o vou.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Recomeçar


    A rua estava aparentemente deserta, Clara percorria o empedrado ingreme da calçada, e era a verdadeira personificação da derrota... nunca antes um fracasso a havia perturbado tanto...a carta fora-lhe entregue em mão naquela mesma tarde, poucas horas antes alguém se incumbira de destruir os seus sonhos de futuro, a sua esperança!

Braços descaídos, lágrimas a correr lentamente pelo belo rosto com uma expressão pesada, com todo o peso da necessidade de recomeçar, a partir do zero.

A verdade é que, feliz ou infelizmente, o dia ainda não terminara, ainda faltavam algumas horas para que clara encontrasse o sossego possível nos braços da noite, nem que para conseguir descansar tivesse de recorrer ao último recurso que passava por um antidepressivo eficaz, era uma paz a prazo, mas pelo menos teria a duração das necessárias oito horas de sono.

Perto de casa, no recanto, ele olhava para ela, bela, perigosamente bela, o olhar predatório que ele fazia incidir sobre Clara era evidente a qualquer observador tivesse a oportunidade de contemplar a cena.

Todavia, eram muitos anos de enamoramento, que nem a força das circunstâncias alterara, mas ele sabia que não iria saber resistir ao cheiro doce do sangue que corria pelas veias de Clara...e não resistindo, ainda assim, das duas uma, ou nada estava perdido, ou perder-se-iam ambos.

No exacto momento em que Clara procurava a chave de casa na sua mala, a auto-censura de Gonçalo despareceu  e ele saltou sobre a sua amada, imobilizou-a enquanto esta gritava de pânico, e de forma violenta, mas ainda assim com a doçura dos sentimentos nobres que por ela nutria, fez o que o movera até ali, aquele beco recôndito, cravou os caninos no pescoço da rapariga que, perdendo as forças, desmaiou...

Ternamente, o Vampiro segurou a rapariga e limpou os dois fios de sangue que ainda escorriam do seu pescoço.

Era o recomeço que Clara sentira necessário, da estaca zero, mas certamente não como ela esperara...

(By Isabel Alexandra Almeida - Os Livros Nossos)

Carga Policial

Sinto algo a me atingir o braço, uma dor aguda e alucinante percorre-me, olho para este e vejo que sangro, atingiram-me com um pires ou uma chávena. Respiro fundo, acalmo-me. Não posso reagir, nem intervir, chamam-me: "Filho da puta, anda se tens coragem", respiro fundo novamente, agarro o meu cacetete com força, o punho marca-se na minha mão. Outro projéctil atinge o meu colega no nariz, este fica a sangrar e nós não nos movemos, mais insultos, mais coisas que nos atingem, nas pernas, nos braços, na cara, no capacete. Chamam-nos porcos e partem as cadeiras de um café, o dono grita: "não fazem nada?" E finalmente chega a ordem, "avancem", empunho com força o meu cacetete, baixo a viseira e avanço, consciente que posso matar alguém, essa noite sei que não vou dormir, os gritos de quem foge de mim, inocentemente, me vão perseguir até casa, onde o meu filho e a minha mulher me aguardam. Cumpro o meu dever, nem que isso me mate.

Amuleto

Quando se sentia nervosa mandava a mão à chavinha de prata que trazia pendurada no pescoço, num fino e comprido fio. Fazia questão da chavinha ficar sempre escondida debaixo da roupa. Oh! Ela tinha vergonha daquela chavinha. Primeiro porque a achava com uma total ausência de classe e a tender para o brejeiro. Em segundo, porque tinha vergonha daquela superstição da chavinha lhe dar sorte.

Sempre que havia um momento especial lá punha a chavinha: um encontro com um rapaz; o exame de condução; uma entrevista de emprego, como era o caso.

A chavinha tinha sido da sua mãe e ficara com ela quando morrera. Isso ainda lhe dava mais ganas na chave. Era uma recordação do mais banal que podia existir. Pior, tinha sido o seu pai quem lha tinha oferecido quando tinham começado a namorar, o que tornava a dita chave ainda mais vulgar.

Quando regressou a casa guardou a chavinha de prata numa pequena caixa preta que tinha para esse efeito. Ficaria lá até ser necessária outra vez. Talvez para o primeiro dia de trabalho. Não sabia… A verdade é que não tinha prova nenhuma de que a chave lhe desse sorte. Contudo, a superstição é que a levava a usá-la. Mesmo tendo a certeza do seu efeito nulo. Ou negativo, se tivesse o azar de alguém ver aquela chavinha no seu pescoço.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Adolescências...


Olá Katy,

Como tás? não tens aparecido nas aulas esta semana, como não me respondeste às SMS, acho que ficaste sem mensagens,  ou então, a tua mãe está zangada contigo outra vez, por isso, decidi escrever-te este mail para te contar as últimas news do nosso people lá da turma.
A professora de ciências diz que não vai entregar os testes e trabalhos se a turma continuar a ter o mesmo comportamento vergonhoso dos ultimos tempos.
De nada serviu o marrão do nosso delegado Fábio ter usado toda a sua graxa sobre a Professora, foi bué de fixe ver o vaidoso do Fábio, sempre convencido como o raio, a tentar convencer a profe, e ela a ficar na dela lolol, tu ias amar ter visto a humilhação dele!
Agora, as bad bad news, o Sérgio curtiu com a Roberta...
Provavelmente ele vai contar-te quando falarem, pois quase toda a escola assistiu ao momento hot dos dois.
Amiga, tens de pensar bem na tua vida e se ele vale mesmo a pena todos os teus mimos e esforços, tu até lhe deste as respostas todas do teste de história, depois ele veio com a cena do "somos quase namorados" mas tu viras costas e puff, Roberta no caminho.
 Eu apoio o que decidires, mas pensa bem se ele te merece...eu acho que não, com este panorama.
Como tua melhor amiga, acho que devo avisar-te e dar-te a minha opinião sincera, o Sérgio não gosta de ti, ele vai dando esperanças de namorarem só para  tu te ires descosendo com apontamentos e testes e o raio que o parta!

 Os homens são todos iguais amiga,
Bem , fica bem cuida-te e pensa primeiro em ti!

 Beijokas da tua forever best friend,

Saritha
(By - Isabel Alexandra Almeida)

quarta-feira, 21 de março de 2012

burocracia


Manuel era um homem comum sem grandes sonhos nem esperanças, limitava-se a viver a sua vida de forma simples. Nunca sonhara com carros nem viagens, mas um dia decidiu que tinha de perder o medo que sentia de voar e comprou um bilhete de avião para um sítio qualquer com um nome exótico que não conseguia pronunciar.
No primeiro dia das suas férias, estava no aeroporto, sentado numa cadeira com as unhas cravadas no seu casaco, tentando controlar o seu receio. Ao seu lado sentou-se um homem com ar derrotado, o Manuel decidiu conversar com ele para se distrair da viagem que o esperava. Chamava-se Pedro e era um imigrante que tentava voltar para casa e ver os seus filhos, mas o voo já estava cheio e teria de esperar pelo dia seguinte. Este pronunciou o nome da cidade com toda a perfeição, era a mesma para onde o Manuel seguia.
Chamem-lhe sorte ou destino, Manuel chamou-lhe Deus, ele deu o bilhete dele ao pobre homem e voltou para sua casa. No dia seguinte veio a polícia dar à sua mãe os pêsames pela morte do seu filho num acidente de avião. Esta confusa chamou o seu filho, e este tem passado os últimos cinco anos a correr de cidade em cidade, de ministério em ministério, a tentar provar que ainda está vivo.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Mão Direita


Era uma vez uma mão direita. Ela era muito convencida, achava que era a mão mais bonita do mundo. Em cada dedo usava um chapéu diferente porque não podia repetir nenhum todos a achavam normal afinal ela tinha uma irmã, a mão esquerda, que era quase igual a si. Mas a mão direita não ligava ao que diziam sempre achando que era a melhor de todas. um certo dia chegou uma outra mão direita, ainda mais bonita que a nossa protagonista, sempre na moda também usava um lenço em torno do pulso todas as outras mãos começaram a cochichar que esta sim era uma mão com estilo. A nossa pequena mão sentiu-se triste com  o terem deixado de lhe darem atenção e percebeu que não era melhor que as outras, a sua irmã disse-lhe que ia sempre gostar dela independentemente do que os outros dissessem e assim as duas mãos viveram felizes para sempre uma com a outra.

terça-feira, 13 de março de 2012

Pinceladas


Ajoelhada em frente à tua campa as lágrimas correm-me livres pela minha face. Sei que já não te verei novamente e nunca mais olharei nos teus profundos olhos azuis.
Passaste anos a sofrer com a tua doença, Parkinson, vi-te decair com o passar dos anos. Ao início tentaste controlar os tremores pintando, existem alguns belos quadros por ti pintados, depois isso já não te ajudava. Nessa altura, tinhas apenas que pegar na tua máquina fotográfica, o teu grande e único amor, para que, mesmo nos teus últimos momentos, para conseguires controlar os tremores e atravessar a rua da tua casa para o jardim da praça com as muletas penduradas nos braços eco passos firmes sem a menor indicação de tremores. Mas, isso era sol de pouca dura, rapidamente as forças lhe faltavam e os tremores voltavam.
Ainda me lembro de ser pequena e morrer de medo do teu dedo sem unha o qual tinhas cortado na guilhotina quando eras mais novo e ainda jogavas futebol no Rio-Ave e tentavas fazer um nome em fotografia.
Tantas viagens, tantos prémios, terão mesmo valido a pena?
A vida não te premiou com filhos, viveste para o trabalho e para nós, as tuas sobrinhas, mesmo que nem sempre te víssemos.
Foste feliz, tudo o que passaste fez-te o homem que relembro aqui. Não consegui vir ao teu funeral, desculpa não fui capaz de te ver assim, queria que a minha memória de ti fosse as que tenho de criança a correr atrás de ti para a câmara escura, onde revelavas os rolos e contavas os seus segredos, quero apenas recordar quando me ensinaste a pintar com os teus pastéis uma bela rosa vermelha e o teu sorriso que iluminava os teus olhos azuis.
Agora vou embora e deixar-te partir, vou seguir a minha vida contigo no meu coração e na minha memória para sempre como aquele homem enorme que brincava e ria como uma criança.

segunda-feira, 12 de março de 2012

A Filha que tomou conta da casa

- Que é feito daquela revista que trouxe da biblioteca? – perguntou ao marido numa segunda-feira de manhã.

- Deve estar na pilha de revistas e jornais.

Mas não havia nenhuma pilha de revistas e jornais em casa. Pelos vistos, a filha tinha resolvido, durante o fim-de-semana, dar uma das suas arrumações, e a pilha de livros e revistas fora para a reciclagem.

- A revista era nova! O que digo agora na biblioteca? Fizeram-me especial favor em deixar trazer a revista para casa.

Não havia resposta para isso, portanto o marido não a deu. Deixou-a atarantada na sala, mudou de divisão. Talvez tenha ido para a casa de banho.

Sempre se dera bem com o marido. Paixão de juventude, sempre serviram de exemplo de casal feliz, entre as outras pessoas. Mas ultimamente ele deixava-a sem resposta, principalmente em conversas em envolvessem a filha. Esta, ultimamente, adquirira a mania das arrumações e das limpezas, e dava volta à casa como se fosse dela. A mãe, que não era muito dada aos serviços domésticos, andava a sentir-se à parte das decisões familiares. Podia não ser arrumada, mas ainda era a mãe daquela casa.

- Quando é que ela sai de casa?

- Mas tu queres a tua filha fora de casa?

A resposta do marido demonstrava raiva. Não era bonito desejar que a filha saísse de casa. Enquanto lhe apetecesse estar, deveria permanecer. Assim ditam os costumes meridionais. Mas a verdade é que a rapariga tinha conseguido encaminhar bem a sua vida de adulta. Mas decidira que só sairia de casa quando encontrasse marido. Mas que ideia mais retrógrada! Assim, nunca sairia de casa! Não haveria homem que a quisesse se ela continuasse obcecada com as arrumações.

- Não te importas que ela mexa nas tuas coisas? – ainda perguntou ao marido. Este respondeu-lhe que não se importava. Mais! Até gostava. Adorou quando ela lhe selecionou a roupa interior, e lhe deitou fora aquilo que já estava muito velho. Também gostou quando ela lhe guardou em separado a roupa de verão e a de inverno, ou quando lhe ordenou as camisas, no roupeiro, por cores.

Não havia como falar com ele a este respeito. Ele estava do lado da filha. Pegou na carteira e foi à rua. Passou num quiosque, comprou um exemplar da revista que desaparecera, para assim tentar remediar o assunto com a biblioteca. No quiosque, um jornal de classificados chamou-lhe a atenção. Talvez fosse altura de procurar um espaço para si própria, uma casa onde pudesse ter a roupa desarrumada e a loiça por lavar.

domingo, 11 de março de 2012

Comboio

No comboio estava um homem que olhava para o seu telemóvel e sorria. O seu olhar revelava desejo e ânsia. Um nervoso miudinho crescia dentro de si conforme o comboio avançava sobre os carris. Na sua opinião, este movia-se devagar demais, ele queria ir até ao motorista para lhe pedir que acelerasse, não parando nas estações que o separavam do seu destino, já que tinha uma bela mulher à sua espera.
Na sua mão esquerda, brilhava uma aliança de ouro, para a qual ele olhou e desejou que a sua esposa fosse mais como a loiraça que o esperava. Na noite anterior, a meio de uma conversa ela insinuou que sabia do seu segredo, mas não adiantou mais a conversa, pelo que ele pensou que seria apenas produto da sua imaginação.
Durante a semana inteira ele ansiava por aqueles encontros secretos de sexta-feira, quando ela o esperava nua no mesmo quarto de hotel que ele usava há anos, em primeiro com prostitutas e depois com várias amantes que tivera. E apesar da sua ânsia, o comboio movia-se nos carris como sempre lentamente seguindo o seu percurso pela cidade.